O celular me acorda com a música daquela série que amava e agora me desconsola numa agonia preguiçosa. As notificações me aguardam. Passo algumas para o lado, mas não a do aplicativo de fotos.
Hoje, há um ano atrás.
Fotos felizes, parece que foi há uma eternidade. A gente na rua sem medo do Sol. Olha só, um cachorro deitado na rua, adoro fotografar vira-latas, pombos e gatos ariscos. E essa comida? Eu nem lembro mais o gosto, mas saiu bonita na foto, olha que maravilha.
E depois uma sequência de fotos em casa, essas que me acompanham há semanas. Quase nenhuma é publicável, mas ajuda a me lembrar. Do trabalho, das plantas, eu só não me lembro desse gato com olhos um de cada cor.
Pesquisar. Heterocromia que fala. Como iria me esquecer de algo tão incomum?
O dia passa na velocidade dos arrastos, vídeos curtos e dos esquecimentos. Os remédios, os compromissos, os boletos. Tudo acumula, menos as lembranças.
A campainha toca, deve ser o zelador. Hora de botar o lixo pra fora. Pego dois sacos pesados, pingando sangue pela casa. Abro a porta e meu bom dia é um murmúrio abafado. Será que ele me ouviu?
Quando Valmir vai embora, ele surge de lugar nenhum: O gato heterocromático. Tiro uma foto. A mesma foto. Ele mia alto, mostrando suas presas, caminha até o portão e me olha mais uma vez. Está me chamando.
Ah não, de novo não.
📷 Foto de
Andrea Piacquadio
Descrição da imagem: Uma pessoa segurando um gato branco com um olho azul e outro verde.